quarta-feira, 28 de abril de 2010

“As animações de Terry Gilliam”



Por Luciana Abdo*

Alguns fãs podem se surpreender ao saber que Terry Gilliam não nasceu na Inglaterra, mas nos Estados Unidos (Minnesota em 22 de novembro de 1940). Gilliam era o único americano no célebre grupo britânico Monty Python. Os outros cinco integrantes eram ingleses. A série de TV Monty Python’s Flying Circus fez imenso sucesso na Grã-Bretanha e Estados Unidos e os filmes mundo afora. Em 1973 Gilliam corrigiu definitivamente o ‘engano’ naturalizando-se cidadão inglês. Afinal de contas, foi na terra de Sua Majestade que o súdito ilustre estreou sua carreira no cinema.

Após formar-se em Ciências Políticas nos Estados Unidos, Gilliam procurou Harvey Kurtzman, co-fundador da famosa revista Mad, cujo trabalho admirava. Ainda na época de faculdade, Gilliam havia trabalhado como editor e cartunista de uma revista da faculdade chamada Fang. Tratava-se de uma revista literária, mas sob a direção de Gilliam, reorientou-se para as artes visuais e o humor. À época, Kurtzman editava a revista Help e empregou o novato como escritor e ilustrador. No cargo, ele teve a oportunidade de conhecer várias celebridades, entre elas o comediante inglês John Cleese que se apresentava em Nova York e havia sido convidado pela revista a participar de uma fotonovela cômica.

Alguns anos depois, Gilliam se mudou para Londres e contatou John Cleese em busca de trabalho na TV. Cleese o recomendou para o produtor da BBC Humphrey Barclay, que produzia o programa infantil “Do Not Adjust Your Set” (algo como “Não Ajuste sua TV”). Gilliam apresentou alguns esboços escritos para o programa, mas Barclay parece ter gostado mesmo foi de seu talento como cartunista e o contratou para a equipe de redatores, que incluía Eric Idle, Terry Jones e Michael Palin, futuros companheiros no Monty Python.

Na mesma época, Gilliam trabalhou como cartunista na série, “We Have Ways of Making You Laugh”, que combinava sketches humorísticos com entrevistas de convidados. O entrevistado de um dos episódios era um radialista muito conhecido na Grã-Bretanha e Gilliam resolveu aproveitar uma mixagem produzida por um colega do programa como trilha sonora para um curta de animação. As falas do DJ haviam sido gravadas e mixadas desordenadamente, resultando em um monólogo caótico e surreal. Como havia pouco tempo e dinheiro para produzir a animação, ele utilizou imagens tiradas de revistas e fotografias antigas recortadas e animadas em stop motion.

Segundo Gilliam, essa escolha resultou em parte pela falta de recursos e em parte inspiradas por outras animações, especialmente o trabalho de Stan Van der Beek. Nesta época, ele produziu também “Beware of The Elephants”, uma animação em preto e branco ainda meio rudimentar, mas que já com o senso de humor característico.

O primeiro episódio de “Monty Python’s Flying Circus” foi transmitido a cores em 05 de outubro de 1969 e a última série foi exibida em 1974. No amalucado grupo formado por Gilliam, Eric Idle, Terry Jones, Michael Palin, John Cleese e Graham Chapman, todos redigiam os quadros e atuavam. Terry atuava apenas eventualmente já que ele era responsável pelas partes animadas dos episódios. Mesmo assim, ele encarnou alguns dos personagens mais excêntricos do programa, como por exemplo, o Cardeal Fang da Inquisição Espanhola.

Ele teria declarado “eu sabia as técnicas de animação na teoria, tendo lido um livro ou dois, mas eu nunca havia feito nada na prática. A técnica de recorte eu tinha visto anos antes em Nova York. Era rápida e crua. Se eu tivesse tido tempo e dinheiro, provavelmente teria feito algo no estilo Walt Disney. Eu acho que eu era bom com efeitos sonoros e timing. Os ruídos são cinqüenta por cento do efeito final”.

As animações proporcionavam a ligação entre os quadros e se encaixam com perfeição no humor caótico e absurdo da série. Os quadros são quase sempre pastiches de programas de TV (principalmente telejornais e documentários) e outros programas humorísticos e propagandas. Estes pastiches e outros quadros transcorriam de modo errático, característico do fluxo de pensamento, sucedendo um ao outro sem conexão lógica. Trechos das animações ou mesmo personagens delas podiam ‘invadir’ o quadro ao vivo e vice-versa.

A técnica utilizada é a animação de recortes em stop motion, à qual Gilliam acrescentava ruídos e efeitos de som muitas vezes feitos por ele mesmo em um gravador barato. Ele usava imagens impressas como revistas e fotos misturados aos cenários e figuras que ele desenhava com formas estranhas, geralmente ‘gorduchas’ ou pontudas e que causava ainda mais estranhamento, mas eram também engraçados.
Os elementos pictóricos mais utilizados eram retratos antigos, pinturas e esculturas renascentistas, animais e o corpo humano. Um tema recorrente são partes do corpo desmembradas, mãos, braços, dentes, pés etc, aparecendo em locais ou situações totalmente inusitadas. Por exemplo, no quadro “Hospital for Over-Actors” dois atores estão vestidos como Hamlet recitando “To Be or Not To Be”. Enquanto estão declamando, eles trocam crânios e cabeças de várias formas.

Além do absurdo, outro tema sempre presente é um certo humor macabro. Corpos sendo esmagados ou cortados ao meio, carros perseguindo pessoas, mãos ou pés que esmagam cidades, são muitas as imagens de destruição ou desmembramento, porém sempre com intenção humorística. Este tipo de humor negro será um tema constante não só no trabalho de Gilliam como animador, mas também como diretor de cinema.

Uma leitura que se pode fazer da série Monty Python como um todo e especialmente de suas animações é um certo rebaixamento do ‘gosto burguês’ da época, encarnado, por exemplo, na arte clássica. A famosa escultura de Rodin “O Beijo” e a obra prima de Botticelli “O Nascimento da Vênus” foram exemplos desse processo demolidor.
Muitas vezes os próprios burgueses são os aviltados. Respeitáveis senhores e senhoras do século passado, personalidades públicas, políticos e militares são submetidos a situações vexamosas e absolutamente engraçadas.

Os preferidos, no entanto, são mesmo os comerciais de TV ou quaisquer peças de marketing e os programas televisivos. Exemplos dessa tendência autofágica irresistivelmente mordaz estão em todos os episódios.

Muitas vezes, há implicações políticas nas animações, mas elas nem sempre são óbvias. No episódio “Man's Crisis of Identity in the Latter Half of the 20th Century”, Gilliam criou uma propaganda do produto “Dynamo Tension”, que promete um corpo forte para homens raquíticos. É sátira das propagandas e à mentalidade consumista, que transformam qualquer coisa em produto. Mas também reflete a instabilidade política da época (guerra-fria, conflitos armados, atentados do IRA, etc), ressaltando a impotência do homem comum diante de da tensão cotidiana da violência e principalmente da insegurança.

Gilliam produziu alguns curtas de animação fora do programa que seguem o mesmo estilo e estrutura, como “Story Time” (1969) ou “Miracle Of Flight” (1974). Infelizmente, após a dissolução do Monty Python, Terry Gilliam não produziu mais animações, a exceção das feitas para os filmes do grupo. Felizmente, no entanto, ele seguiu com outros projetos e se tornou um diretor de cinema conhecido, cuja visão surrealista e fantasiosa continua a maravilhar e divertir. Na história do cinema e da televisão é difícil encontrar um profissional tão bem sucedido e influente em ambos os veículos.

A seguir uma lista publicada no jornal inglês The Guardian das animações preferidas de Gilliam. http://www.guardian.co.uk/film/2001/apr/27/culture.features1

The Mascot (Wladyslaw Starewicz, França, 1934) – A primeira vez que vi o trabalho do inovador russo Wladyslaw Starewicz foi no Festival de Sitges, e os bonecos eram tão encantadores que quando cheguei em casa encomendei todos os vídeos que pude encontrar com o trabalho dele. Sua obra é absolutamente excitante, surreal, inventiva e extraordinária, abarcando tudo que Jan Svankmajer, Walerian Borowczyk e os irmãos Quay fizeram posteriormente. Este é seu último filme, após “The Tale of the Fox” de 1930; está tudo lá nessa sopa de animação cósmica. É importante lembrar, antes de viajar por esses mundos alucinantes, que tudo isso foi feito anos atrás por alguém que agora está esquecido. Aqui é onde tudo começou.

Pinocchio (Hamilton Luske e Ben Sharpsteen, EUA, 1940) – Para um americano crescendo em Minnesota como eu, Walt Disney era animação. Mas o deleite dos filmes da Disney sempre veio de assistir os vilões. Visualmente, Pinocchio foi o mais rico de seus filmes e também o mais sombrio. O mundo dos Garotos Maus é verdadeiramente um pesadelo imortal, cheio de imagens assustadoras, de garotos se transformando em burros e todo o tipo de estranhezas. Então, tem aquela coisa com gaiolas, e eu acabei de notar que cada filme que fiz tem uma cena com alguém em uma gaiola – um traço que eu atribuo a ter assistido Pinocchio. Também há ótimas canções no filme; Disney era essencialmente um cineasta de musicais. Além disso, há algo intrigante sobre um personagem que quer desesperadamente ser uma pessoa real, mas que todo mundo o acha mais interessante como um pedaço de madeira.

Red Hot Riding Hood, Tex Avery - EUA, 1943. A mágica das animações de Tex Avery está no mais absoluto exagero em tudo. A imagem clássica de Avery é uma boca que vai se abrindo até os pés até bater no chão ruidosamente, os olhos pulam pra fora e a língua se enrola por meia milha: isso é um espetáculo maravilhosamente liberador. Avery simplesmente espichava o corpo e o rosto humanos do jeito que ele queria e o resultado era incrivelmente engraçado. Não há hesitação em seu trabalho, nem senso de ter ido longe demais. Eu acho que hoje em dia eles deveriam produzir festivais “Tex Avery” como antídoto para o ‘politicamente correto’. Também há um senso infantil de imortalidade e indestrutibilidade em seu trabalho; pessoas são apertadas, amassadas, espremidas, curvadas, qualquer coisa, e elas voltam ao normal. Na verdade é como o mito da vida eterna.

Out of the Inkwell, Dave Fleischer - EUA, 1938. A primeira vez que assisti este filme, eu era adolescente e, em retrospecto, ele representou um salto na minha carreira. Foi quando eu descobri o surrealismo. Você tem essa cena no qual você vê um animador criando alguma coisa que subitamente cria vida fora do desenho. O personagem começa se comunicando com o animador e de repente é como em Frankenstein, a criação de um monstro sobre o qual você não tem controle. Até eu assistir “Out of the Inkwell” eu sempre pensei na animação existindo em um plano, mas aqui estavam os irmãos Fleischer levando você diretamente através da lente e para dentro do filme. É claro que eu adorei quando assisti – não só porque eu queria ser o animador cuja tinta cria vida, mas porque eu queria ser a animação, um palhaço infligindo devastação ao mundo.

Death Breath, Stan van der Beek - EUA, 1964. Depois da faculdade, eu vivi em Nova York com algumas pessoas que assistiam filmes avant-garde experimentais. Nós aderimos a eles porque eles incomodavam todo mundo, mesmo sendo formidáveis. Uma noite, estávamos ‘agüentando’ alguns desses filmes quando na tela apareceu uma foto recortada de Richard Nixon tentando falar com um pé na boca. Era o trocadilho de animação mais simples imaginável. Anos depois, quando eu vim para a Inglaterra e estava trabalhando em um programa de TV que supostamente as pessoas deveria fazer as pessoas rirem, havia um problema com a dramatização de uma das idéias. Então, eu peguei a foto de Jimmy Young, cortei pela metade, movi sua boca um pouco e todo mundo riu. Conseqüentemente, isso viu uma marca registrada, pela qual eu acho que van der Beek deveria levar o crédito.

Les Jeux des Anges, Walerian Borowczyk - França, 1964. Walerian Borowczyk era um homem degenerado cujos filmes eram incutidos de crueldade e estranheza únicas. Ele começou fazendo animações extraordinárias, passou a dirigir filmes clássicos como “Goto, Island of Love” e “La Bête”, e então acabou dirigindo “Emmanuelle 5”, que acredito ser um final perversamente apropriado. Les Jeux dês Anges foi minha primeira experiência de animação totalmente impressionista. Não me mostrou nada especificamente, apenas som e movimento com os quais você cria um mundo.

Dimensions of Dialogue, Jan Svankmajer - Tchecoslováquia, 1982. As animações em stop-motion de Jan Svankmajer usam objetos familiares, ordinários de um modo profundamente perturbador. O primeiro filme dele que vi foi “Alice” e eu fiquei extremamente agitado pela imagem de um coelho com pêlos e olhos autênticos. Seus filmes sempre me deixam com sentimentos variados, mas todos têm momentos que realmente me pegam; momentos que evocam aqueles pesadelos assombrados vendo coisas comuns inesperadamente tomarem vida.

Street of Crocodiles, Irmãos Quay - Reino Unido, 1986. Há algo de peculiar em primeiro se apaixonar por Jan Svankmajer e só depois descobrir os irmãos Quay – americanos que vieram para a Europa e de alguma forma acabaram trabalhando em um estilo que se parece com a animação polonesa. Como um americano, eu sempre quis ser seduzido para dentro desta estranha idéia decadente, corrompida de Europa e os Quays criaram este mundo de maneira que me hipnotiza, mas que eu não entendo completamente. Talvez eu goste deles porque eles acabaram indo muito mais longe que eu.

Knick Knack, John Lasseter - EUA, 1989. O trabalho de John Lasseter foi a primeira animação digital na qual os personagens tinham vida genuína. Ser capaz de mesclar aquele nível de caracterização com a qualidade suave, cristalina e limpa da computação gráfica; de dar uma sensação de existência tridimensional verdadeira, de tato e de toque, foi como descobrir toda uma nova textura de animação. A qualidade tem persistido desde os curtas de Lasseter como “Knick Knack” até “Toy Story” 1 e 2, sendo que todos são tocantes, engraçados, inteligentes e brilhantes.

South Park: Bigger, Longer and Uncut, Trey Parker - EUA, 1999. Parker e Stone foram os únicos até agora a se inspiraram em mim, que levaram a crueza da minha animação ainda mais fundo. Seu trabalho é tão infame que é um milagre que funcione. Eu garanti a eles que, ainda que fosse ótima para a TV, não havia modo de agüentá-la por 90 minutos. E, obviamente, o filme deles funciona brilhantemente.

Referências
www.bbc.co.uk/comedy/montypython
www.bbc.co.uk/comedy/people/terry_gilliam_person_page.shtml
www.smart.co.uk/dreams/tgbiog.htm
www.smart.co.uk/dreams/tgyoutub.htm
www.digitalmediafx.com/Features/terry-gilliam.html


*Luciana Abdo é estudante do curso de cinema e video da UNA

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