quinta-feira, 5 de março de 2020

17 MUMIA - Entrevista Cassandra Reis - Lé com cré (Menção Honrosa)













Em que circunstâncias foi feito o filme? Como nasceu a ideia? É conclusão de curso?

O filme é meu trabalho de conclusão do curso de Audiovisual (ECA/USP).
A ideia surgiu na tentativa de fazer um pouquinho de cada uma das coisas que me interessavam antes e durante a graduação. Por um lado, eu sempre gostei de trabalhos manuais e tive uma queda por animação, mesmo sem saber exatamente como tudo aquilo funcionava. Por outro, sempre me encontrei mais nas histórias de criança e tinha (ainda tenho, na verdade) uma imensa vontade de me comunicar com esse público e, talvez, causar nele uma fração do que as histórias que vi quando pequena causaram em mim.
Com tudo isso na bagagem, no comecinho de 2013 o projeto começou a rondar minha cabeça e, a partir do contato com a obra do poeta Manoel de Barros, do professor Javier Naranjo e do documentário animado Creature Comforts, ganhou a forma que tem hoje.
Assim, em 2014 preparamos o projeto para ser avaliado enquanto TCC. Fizemos as entrevistas entre abril e agosto de 2015 e o roteiro/artes conceituais até outubro desse mesmo ano, quando demos início à confecção dos bonecos e do cenário, processo que acabou só no fim de 2016. De maio a outubro de 2017 o filme foi animado, mas finalizado só em maio do ano seguinte.
Enfim, foi um processo longo, cheio de entraves e muita aprendizagem. Vendo à distância, acho que o caminho foi o possível através das circunstâncias que estavam impostas, que esteve longe de ser o ideal, mas que fez tanto o filme, quanto a mim mesma, sermos o que somos hoje.

Como vocês escolheram os temas: dinheiro, medo, coisas de menina e de menino?

Eu a a Mari Lopes, produtora do filme e co-roteirista, listamos alguns temas que gostaríamos de abordar. A ideia inicial era que eles não tivessem um recorte muito específico, fossem mesmo um tanto aleatórios, passeando por uma variedade de aspectos da vida material, social, filosófica e por aí vai. Como tínhamos algumas (várias) limitações de produção, fomos obrigadas a reduzir o número de episódios e, com isso, chegamos aos sete temas sobre os quais faríamos as entrevistas; além dos que ficaram, os outros temas seriam família, culpa, magia e mentira, mas logo após as entrevistas, decidimos por não produzir culpa e magia, porque não tinham "rendido" muito.
Ao longo do tempo, com a produção se alongando e nosso prazo para desocupar o estúdio do departamento de audiovisual da universidade chegando ao fim - foram 10 meses entre montar o set, realizar testes e animar -, optamos por cortar novamente dois dos temas. Com isso, ganhamos um pouco mais de tempo para o que faltava e finalizamos, então, os temas que estavam mais “redondinhos” (dinheiro, medo e coisas de menina e de menino).

Qual a técnica utilizada?

A animação foi feita em stop-motion, a 24fps, quase todo rotoscopado (usei como referência a imagem real das crianças entrevistadas, a fim de preservar alguns trejeitos marcantes em cada uma).
Os bonecos tem esqueletos de arame e barra de alumínio e os corpos foram feitos de látex, com as cabeças feitas em resina e detalhes (cabelos, orelhas, narizes) em epóxi.

Algumas frases impactaram nosso público como a criança que diz que livro não se compra, pega emprestado, sentimentos, pai com medo de chorar, medo do adulto de perder o filho. Algumas palavras presentes no vocabulário deles como pipiu e perereca, gay e opções sexuais são faladas de forma inocente.  Vocês pensaram que poderia  haver um impacto no Brasil de hoje?

Definimos os temas em 2014 e, ainda que esperássemos algum tipo de discussão  (principalmente, nos episódios sobre coisas de menina e de menino e sobre família - que não foi animado, mas que abordava estruturas familiares não tradicionais, casais homoafetivos, adoção, etc), os escolhemos por entender que eram (e são) temas relevantes e que tratá-los do ponto de vista das crianças seria não só uma forma de entender como esse assunto sai da conversa entre adultos e chega até elas, mas também como o olhar infantil pode ou não escapar de uma visão imposta, pré-estabelecida e preconceituosa, sendo autônomo e espontâneo.
Por outro lado, é certo que jamais pensamos no impacto que haveria no Brasil de hoje. Jamais imaginei o Brasil de hoje, na verdade. Não pensei que revendo o Lé com Cré,  sentiria algum receio pela reação a algumas falas, que vislumbraria uma parcela das pessoas avessas ao fato das crianças serem tolerantes e receptivas às diferenças. Ou que eu me pegaria pensando se o que elas falam poderia ser censurado em algum contexto ou que poderíamos ser acusadas de corromper uma infância só porque uma personagem diz que "eles não se têm que escolher o gosto das pessoas, só o deles" ou que "menino ou menina... não faz nenhuma diferença".
Por sorte, porém, a recepção ao filme sempre foi majoritariamente positiva, seja entre adultos ou crianças. Assim, se por um lado há o medo causado pela chegada de tempos mais sombrios do que eu jamais poderia imaginar lá em 2014, há também um fiozinho de esperança que mora nessa resposta positiva.

A escolha dos personagens: Princesa Ruiva, Cachorro, adulto, elefante, Dora a aventureira, artista, Cinderela de uma certa forma representam o universo que essa crianças estão inseridas?

Acredito que representam, pelo menos, um pedacinho desse universo. A própria escolha foi mais elaborada do que os créditos deixam transparecer. Algumas delas não tinham apenas os personagens em mente, mas sim, o mundo que eles ocupavam quando me falavam como gostariam de ser. A Princesa Ruiva, por exemplo, embora seja baseada na personagem Merida de Valente (Pixar, 2014) foi descrita pela Bárbara como a única princesa que andava a cavalo e usava arco e flecha. Com base nessa e em outras descrições, acho que elas espelham, sim, a realidade e sobretudo os conteúdos a que as crianças estavam expostas, mas que não se limitam às coisas em si ou a um universo homogêneo, cujo referencial é um só. Parte, do universo interno de cada uma, também a leitura sobre ele e o lugar que habitam.

Como foi a decisão de entrevistar 63 crianças e escolher entre 7?

Mesmo passando por momentos bem difíceis ao longo da produção, acho que fazer esse recorte foi um dos mais difíceis. Queríamos aumentar nossas possibilidades e chances de construir episódios interessantes e, por isso, decidimos entrevistar o máximo de crianças que conseguíssemos. No fim, precisamos optar não pelas respostas em si, mas pelos personagens que poderiam contribuir em um número maior de episódios.
O João Pedro, o adulto, não estava em nosso primeiro recorte. Tínhamos um recorte mais "sério", com outra personagem que trazia questões de cunho social de uma maneira mais explícita. Por sorte, a Raquel, montadora do filme, propôs uma versão em que ele estava e a partir daí não teve como não ser.

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