Talvez seja importante, então, a ausência de
sentimentos, a frieza e, de certa forma, a crueldade em ser um boneco
verossímil do corpo humano. Um robô não tem músculos, artérias, ligamentos
cartilaginosos, pele e sangue. Mas ele tem uma força maior, um desenvolvimento
indestrutível, é mais eficaz e menos fálico, uma disposição que os limites
humanos não permitem. É verdade que um robô uma hora começa a apresentar
problemas, e rapidamente pode se quebrar, sua bateria acabar, seus cabos
arrebentarem, mas tão velozmente quanto ele é destruído, ele é substituído por
um novo, um modelo mais avançado, com mais funções, com menos probabilidades de
sua data de validade se aproximar. Um robô é um reflexo de uma criatura
colossal e faminta, cheia de tentáculos venenosos, barulhenta e aterradora,
chamada Ego.
Seria completamente impossível então, duas criaturas
com os mesmos mecanismos, o mesmo pensamento pré-determinado, a mesma forma e
compartilhando da mesma consciência imitada, se amarem? Sentirem o toque de
suas entranhas frias, partilhando de gestos incompreendidos, se oferecerem, se
entregarem?
Chris Cunningham obviamente, não deixa claro se o
tempo que vemos passar é cronológico ou psicológico, se suas duas personagens,
as duas Björk's robóticas e melancólicas, podem ser a representação de uma
sátira às condutas humanas, aos seus limites e valores de impor definições a sentimentos
que eles próprios, os seres humanos, não entendem.
Somos convidados a entrar numa clínica para reparos de
robôs defeituosos, vemos e ouvimos a robô cantar sobre o amor, declarar os
sentimentos de outrem que se fechou com o medo da mais simples permissão de
amar. Para quem ele canta? Alí há apenas ele e grandes parafuseiras terminando
de moldá-lo, fazendo seus últimos reparos. O que aconteceu com um robô que
canta sobre o amor estar alí precisando de manutenção? Algo nele não deu certo?
As cenas movem-se então como se estivessem voltando, a
lubrificação, a água, retorna. A água nunca retorna, ela segue seu rumo e
encontra caminhos até mesmo entre rochas e colinas, na terra e no fogo, já
disseram provérbios chineses. A água é a metáfora perfeita do tempo, o tempo
cronológico é claro, pois quem pode controlar o psicológico? É estranho pois
passamos a entender que, em vez de estar sofrendo reparos, o robô está sendo
destruído pelas máquinas de manutenção, aquelas que até então tinham a função
apenas de renovar e construir. Mas o outro robô, idêntico ao primeiro, entra em
cena, ele o convida, ele canta junto, e como o seu parceiro, possui seios
artificiais para identificar seu sexo. Duas robôs que se comunicam, veem algo
em comum, elas não estão sendo renovadas, estão sendo desconstruídas, pois
muito provavelmente estão ultrapassadas ou suas datas de válidade já chegaram.
Há então uma explosão de mensagens num único gesto, a
robô a convida para sair daquele lugar, e juntas impulsionam a maior forma
física de amar: o beijo. Elas não veem diferenças, são iguais, e quando há o
amor surgindo, quem terá o direito de julgar sexo, gênero ou cor? Elas precisam
daquilo, elas estão sendo extintas, estão sendo assassinadas lentamente pelas
máquinas que não permitem que robôs tenham sentimentos, se declarem, se
comuniquem e, acima de tudo, sejam humanos. Estão sendo oprimidas pelos seus
iguais, pois elas também são máquinas, há uma anarquia imposta pelas ditadoras
mais fortes e soberanas naquela sociedade, as que constróem e destróem e, por
isso, tem a consciência de que podem fazer o que lhes for conveniente. Afinal,
as máquinas opressoras também tem sentimentos, porque elas não estão
permitindo, elas estão sendo hipócritas e contraditórias com suas crenças de
que duas robôs idênticas não podem amar.
Uma contradição, obviamente, ainda maior e mais forte
presente no curta, é a ironia extrema de dois robôs amando, levando-nos às
vertentes das críticas sociais sobre a frieza humana, os estereótipos, o
conformismo em ser igual, em não fazer tanto quanto deveria, apenas seguir
aquilo a que lhe foi designado. A fotografia final nos faz captar que as duas
robôs apaixonadas estão no meio de um coração, formado pelos braços violentos
das máquinas opressoras que estão destruindo-nas enquanto estas usufruem dos
seus últimos momentos antes de suas células de bateria acabarem. Uma ironia
ainda maior, é claro, pois aquilo que as destrói, é aquilo que forma o que elas
acreditam terem: o órgão representativo do amor, o mais vital e protegido na
caixa torácica, a queda livre, a pulsação mais forte, o calor mais intenso, a
dor mais impiedosa: o coração.
"Você receberá amor,
Deixe-se receber os cuidados,
Você receberá amor
Permita-se confiar nisso
Talvez não das fontes
Em que derramastes
Talvez não das direções
Em que ainda observas
Mova sua cabeça
Está tudo ao seu redor
Tudo está cheio de amor
Tudo ao seu redor
Tudo está cheio de amor
Você apenas não está recebendoTudo está cheio de amor
Seu telefone está fora do gancho
Tudo está cheio de amor
Suas portas estão todas fechadas..."
Permita-se confiar nisso.
Chris Cunningham é um diretor de cinema britânico de videoclipe e
video-arte. Ele nasceu em Reading, Berkshire, em 1970, e cresceu em Lakenheath,
Suffolk. Além de cineasta, é músico, produtor e fotógrafo. Responsável por um
dos videos mais emblemáticos de todos os tempos, Cunningham já trabalhou com
grandes nomes como Madonna e Björk, além de artistas mais alternativos e
reconhecidos no cenário underground da música como Aphex Twin e Portishead.
Björk
é uma cantora islandesa, compositora e produtora musical. Nascida em Reikjavík,
em meados de 1964, Björk é uma das maiores artistas femininas da história da
música, sua contribuição para a arte é unânime e referência para gerações de
cantores indies, folks e electronicos. Reconhecida por inovar e mudar
drásticamente de estilos a cada álbum, sua discografia é uma viagem a um mundo
alienígena, ininterrupto e emocionante, e há aqueles que dizem ainda que não há
um gênero específico para designá-la, a não ser "música Björkiana".
o curta pode ser visto em: http://www.youtube.com/watch?v=u0cS1FaKPWY&feature=relmfu
* Andrew Oliveira (Black Cherry) é aluno do primeiro periodo de cinema e video da UNA - Belo Horizonte e escreve regularmente em seu blog http://www.soldeandrew.blogspot.com.br/
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