Petrus Faria*
Nada como uma boa dose
de Jan Svankmajer antes de ir não dormir
Nascido
em Praga e hoje com cerca de 80 anos, Svankmajer poderia ter vindo ao mundo bem
antes ou depois do que viera, poderia não ter nascido no solo quase mítico de
Kafka e pouca ou nenhuma diferença resultaria disso para sua arte. Certamente
essa é uma afirmação temerária, colhida de observação pessoal e, portanto,
intransferível e pouco digna de confiança. Nem por isso, resolvo-me a evitá-la.
Após assistir a um longa e a vários curtas do diretor, ficou-me aquela impressão
de que se trata de um desses sujeitos que não pertencem a uma terra, a um povo,
a uma nação, mas que trabalham, produzem e se expressam a partir da
individualidade em direção ao universo. Não que o faça com essa intenção. O
universo como receptor é um mero detalhe para quem se dedica, sobretudo, à
construção da mensagem, sem se importar com onde ela chegará ou como será
interpretada.
Após
passear por sites em busca de informações sobre Svankmajer, percebo que
permaneço sabendo, basicamente, o que sabia antes e me dou conta de que
conhecer a fundo sua biografia dificilmente me seria de razoável valia. O
fundamental para conhecê-lo, do ponto de vista de quem se ponha a admirar sua
obra, é tropeçar em seus filmes, é interromper a pesquisa biográfica (mal
iniciada) para descobrir o artista no resultado de seus esforços. Um filme leva
a outro, o tempo transcorre sem que se sinta e ali está, vivo e pulsante, quem
eu procurei em vão na forma de dados e datas. O Svankmajer que eu buscava está
na metamorfose constante de suas personagens, sejam elas figuras humanas ou
animalescas, robóticas ou indefinidas, feitas de carne ou de ossos expostos, de
sucata, de lixo, de comida. O Jan Svankmajer que encontrei está no sono que
perdi, no pesadelo divertido de seus filmes, no incômodo salutar de ficar
acordado observando imagens que nem sempre consigo destrinchar, mas que são
instigantes e que detêm a rara qualidade de não trazer uma etiqueta com data de
validade
Alice no país de
Svankmajer
Alice
(1988), filme do checo Jan Svankmajer, talvez seja a mais fiel adaptação já
realizada do clássico literário do britânico Lewis Carroll (Alice no País das
Maravilhas, 1865). Para que essa frase faça sentido, no entanto, é preciso
alargar um pouco o conceito de "fidelidade". Do ponto de vista
literal, a animação da Walt Disney Pictures, de 1951, certamente é bem mais
fiel ao texto original. Até mesmo a versão de Tim Burton, de 2010, com todas
suas liberdades poéticas (ou patéticas) está mais próxima da história de Lewis
Carrol. A fidelidade do longa de Svankmajer não se aplica tanto ao texto em si,
mas sim ao ambiente lúdico, à atmosfera onírica, surreal e ambígua da obra
literária. Pode-se dizer, incorrendo em uma antítese justificável, que a
liberdade do artista ao adaptar livremente o texto original transformou-o em
outra coisa, do que se conclui que a fidelidade ao "espírito" da obra
deu-se com a traição ao texto. A metamorfose operada por Svankmajer resgata,
como nenhuma outra adaptação, o caráter inventivo do autor britânico.
Vale
dizer que o país de Svankmajer não é a República Checa. Assim como o país de
Carroll não é a Inglaterra. A migração de Alice do livro de Carroll para o
filme de Svankmajer é um trajeto que a cartografia não poderia registrar. Isso
porque, dentre outros fatores, observamos que a dimensão de certos artistas os
transportam para uma terra de ninguém, ou de todos, onde a arte encontra seu
lugar ao tecer um discurso poliglota, que independe do idioma em que esteja
expressa para dialogar com quem se disponha a encontrá-la. Os mais de 100 anos
transcorridos entre as duas realizações (o livro de um e o filme do outro) desenham
aspirais em torno a um elogio do fantástico que se mantivera inabalável. É essa
característica que faz Svankmajer superar o título de surrealista tardio para
encaixar-se em uma definição particular, como se seu nome assumisse a função de
adjetivo. Assim como um Dalí será sempre um Dalí ou um Hitchcock será sempre um
Hitchcock, Svankmajer torna-se imediatamente inconfundível logo que conhecemos
uma amostra de sua obra.
Outras inspirações
Punch
e Judy (1966) é inspirado em um tradicional teatro de fantoches que remonta ao
século XVII. O curta usa de fantoches e de um animal vivo (um roedor) para
explorar, com criatividade visual e trilha sonora envolvente, o conflito violento
entre os personagens principais. Ao final, o roedor, aparentemente motivo da
disputa até a morte dos personagens principais, é o único que sai vivo da
narrativa. Uma orquestra de macacos bonecos abre o curta e remete, ainda que de
maneira abstrata, aos primórdios do cinema, quando a música e efeitos sonoros
que acompanhavam um filme eram produzidos por uma orquestra durante a exibição.
Curiosamente, quando as personagens dos fantoches morrem, as mãos se desnudam
dos fantoches e se recolhem a algum lugar oculto, como se o homem por trás da
encenação também morresse.
Em
Dimensões de um diálogo (1982), o ponto de partida de Jan Svankmajer é a obra
de Giuseppe Arcimboldo (1527-1593).
Mais uma vez, a biografia do artista reverenciado é desimportante: o fato de
Arcimboldo ser considerado, tecnicamente, um maneirista em nada influi na metamorfose
de sua arte na arte de Svankmajer. Arcimboldo tornou-se conhecido por pintar
faces a partir do agrupamento de elementos variáveis, conforme a temática de
cada quadro. Em Primavera, por
exemplo, a figura feminina é basicamente composta por flores. Já em Ar o perfil retratado pelo artista
italiano é montado a partir de uma arrumação de pássaros variados. Svankmajer
monta perfis similares aos criados por Arcimboldo para criar uma animação em
que o diálogo entre as figuras (mais ou menos humanas) basicamente se traduz em
um constante canibalismo, em que um ser se alimenta do outro para, em seguida,
vomitá-lo de volta ao mundo.
Outras
adaptações: O poço, o pêndulo e a esperança (1983), adaptado do conto O poço e o pêndulo, de Edgar Alan Poe; Fausto (1994), livremente inspirado no
clássico de Goethe.
Comida (1992) _ Uma
obra-prima e dois temas recorrentes
O
curta se divide em três partes bem demarcadas: Café da manhã, Almoço e Jantar.
Em todas elas prepondera um surrealismo anacrônico, que não representa nenhuma
fase específica do movimento nem remete diretamente a qualquer artista. A
"comida" do título, como sói acontecer em se tratando de Jan
Svankmajer, sugere múltiplas interpretações: pode ser o que faz de nós o que
somos, o que nos limita à condição de nossas fraquezas; ou talvez seja a causa
natural de todo litígio, compreendendo-a, em largo sentido, como tudo aquilo que
um ser humano pode desejar e tudo que é capaz de fazer para obter o que deseja.
Em
Café da manhã, todos personagens são híbridos de homens e máquinas que se revezam
em um ciclo vicioso. Sentados à mesma mesa temos sempre dois personagens, o
homem que precisa ou deseja alimentar-se e o homem na condição de máquina, cujo
papel é proporcionar o alimento a partir de sua própria constituição física.
Almoço
traz o embate entre dois clientes de um
restaurante. Estão sentados à mesma mesa e são insistentemente ignorados pelo
garçom. Um dos homens está mais apresentável, aparenta ter dinheiro e alguma
educação burguesa; o outro, maltrapilho, é grosseiro nos modos e tende a
repetir o que o primeiro faça à mesa. Em comum, os dois têm a fome e a
disposição para comer qualquer coisa. O filme caminha de modo inequívoco para
uma cena de canibalismo, que não chega a ser explicitada.
Jantar,
mais breve e menos intrigante das refeições da trilogia, desemboca no final
esperado desde o princípio, isso é, no canibalismo em si. Vemos três homens,
cada um por sua vez, comendo um órgão do corpo como se fosse parte de uma lauta
refeição. O primeiro ataca uma das mãos, o segundo uma perna, o terceiro o
próprio sexo.
Além
do canibalismo, outro tema recorrente de Jan Svankmajer também presente nesse
curta é a constante metamorfose. Em Café
da manhã, o ser ora é homem, ora é máquina. No Almoço todo objeto inanimado torna-se comida. Em Jantar, quem come é, concomitantemente,
o que é comido.
Referências:
Livro:
Kriegeskorte,
Werner _ Arcimboldo
Sites:
http://www.youtube.com
http://www.wikipedia.org
* Petrus Faria é aluno do 1 Periodo do curso de cinema do Centro Universitário UNA.
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